Lex talionis: “Olho por olho, dente por dente...”
Diácono Paulo Nunes
É verossímil que a lei de talião marcou tradicionalmente um tempo e que, ainda, existe povo que adere a este regime. A lei de talião (do latim lex talionis: lex: lei e talis: tal, reflexo no espelho) incide na reciprocidade severa do crime e da pena, ou seja, uma retaliação. Para uma melhor profundidade sobre o assunto a ser abordado, nesta reflexão, procuremos na história e no mundo bíblico algumas luzes que possam nos iluminar. Nas Sagradas Escrituras, a lei de talião é conhecida e assimilada pela cultura judaica, principalmente na relação com os inimigos: consistia na retaliação do povo que fosse ferido, ou seja, se fosse retirado um dedo de alguém, significava que o inimigo que o cortou, teria seu dedo cortado, também. Assim podemos conferir nos livros do Êxodo (21,24), Levítico (24,20), Deuteronômio (19,21), dentre outros. Entretanto, constatamos que Jesus condenou essa prática de lei vingativa, disfarçada de justiça, como notamos em Mateus: “Ouvistes que foi dito: Olho por olho e dente por dente. Eu, porém, vos digo: não resistais ao homem mal; antes, àquele que te fere na face direita oferece-lhe também a esquerda; e àquele que quer pleitear contigo, para tomar-te a túnica, deixa-lhe também o manto, e se alguém te obriga a andar uma milha, caminha com ele duas” (cf. Mt 5,21-41).
Observemos que o mundo bíblico bebe na fonte dos antepassados, pois historicamente, a lei de talião surgiu no Antigo Egito com o Código de Hamurabi. Hamurabi foi rei da Babilônia de 1728 a 1686 a.C. e ficou conhecido pelo seu espírito de forte guerreiro, na política e na legislação. Neste regime de lei, definia-se, por exemplo, que os cirurgiões deveriam ser punidos da seguinte forma: caso um médico, no tratamento de um escravo de um plebeu, levasse o escravo a morte, por uma faca num severo ferimento, deveria pagar “escravo por escravo”, ou, quando o paciente não era um escravo, se alguém aniquilasse os olhos de outro, seu olho deveria ser aniquilado, também. Assim surge a expressão “olho por olho e dente por dente, mão por mão e pé por pé”. No entanto, existe uma diferença entre a aplicação dessa lei pelos hebreus e pelos súditos de Hamurabi: para os súditos de Hamurabi, esta lei se revela como testemunho da preocupação daquele imperador pela vida e o bem-estar de seu povo, garantindo a todo homem igual direito à justiça; e, no caso dos judeus, era utilizada como prática de guerra, como assim fez Josué em suas batalhas. Por isso, a citação de Mateus em que Jesus censura esta lei, trata-se de uma exortação referindo-se aos babilônios (“Ouvistes o que foi dito aos antigos...”).
Então, depois de bebermos da fonte histórica e bíblica, será que a prática desta lei perpassa os nossos dias? Não!? Nossa sociedade atual não adere a este regime de lei, pois, nossa sociedade é “paz e amor”, como outrora gritávamos na década de 60 em nossas canções (máxima do Movimento "hippie" – 1960-1990). Hoje, mais ainda: denunciamos as falcatruas dos políticos; colocamos criminosos na cadeia; indignamo-nos com a injustiça e com a impunidade, etc. Mas será que dentro desta perspectiva punitiva não existe uma legislação de talião camuflada? Analisemos alguns pontos de nosso comportamento na sociedade e percebamos o que nos apresenta obscuramente.
A maioria da nossa sociedade diz ser cristã e a menor parte, que não é, adere aos imperativos categóricos de amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos, ou seja, a bondade e o amor sondam os corações de grande parte da população. Mas até que ponto somos capazes de amar o próximo? Talvez até não atingir as nossas instâncias. Diante de tantos acontecimentos no mundo, percebemos que cada vez mais nos colocamos como juízes: queremos julgar as pessoas e puni-las sob os nossos próprios critérios. Se os pais matam os seus filhos, queremos matá-los da mesma forma; se alguém mata a sua namorada e dá o corpo aos cães, queremos matar os assassinos da mesma forma; se nos ferem, queremos ferir da mesma forma e assim por diante. Existe em nosso inconsciente, e, por vezes, em nosso consciente, uma cultura cada vez mais predominante, de “pagar na mesma moeda”, “dar o troco”, ou ainda, “fazer justiça com as nossas próprias mãos”.
Constatamos que a lei de talião serviu a um povo, num determinado tempo, mas Jesus nos ensina a superar os nossos antigos. Esta lei, que aparece como inofensiva, pode fazer, de nós, vingativos. Por isso, são cada vez mais frequentes, em nossa sociedade, os chamados “linchamentos”. Estes ocorrem quando alguém pratica (ou é suspeito de ter praticado) algum crime odioso (crime a ser praticado contra alguém indefeso: criança, doente mental...), como estupro, atentado violento ao pudor ou sodomia, assassinato ou lesão corporal grave. Em situações assim, nega-se o princípio da proibição da autotutela, o qual abona o direito exclusivo do Estado como garantidor da lei, da ordem social e da Justiça. A lei garante a todo acusado por um crime, o direito de se defender e, ninguém pode ser declarado culpado, até que tenha provas suficientes para incriminar o acusado, como podemos constatar na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1791, art. 9º.
Diante deste comportamento, ignoramos o direito de defesa do acusado, de cumprir a pena segundo os critérios da lei e, muito mais ainda, o perdão e a misericórdia. Queremos vingança: “arrancar o mal pela raiz”, nem que para isso custe a vida de uma pessoa, seja ela culpada pelo crime ou não. Como e com que autoridade julgamos e condenamos as pessoas pelos seus delitos? Podemos? E se elas forem ou fossem inocentes? Basta lembrarmos o “Caso Isabella” envolvendo a sua enteada Anna Jatobá e seu pai Alexandre Nardoni, muito conhecido e que causou indignação das autoridades e da sociedade em geral. Longe de querermos fazer análise deste caso e enfatizar nossa opinião sobre o mesmo, queremos apenas olhar por outro anglo, mudar o foco da cena, perceber a trave do nosso olho, antes do cisco dos olhos dos outros (cf. Lc 6,42). Em tempo não muito distante, acompanhamos o caso do goleiro (que já chamam de ex-goleiro) “Bruno” e percebemos que os acusados já são chamados de assassinos (!!!) pela multidão, que faz plateia, sem ao menos acontecer julgamento por parte das autoridades competentes. Aqui, percebemos, também, a parcela de culpabilidade da mídia nos crimes que se tornam show, espetáculo: pessoas perdem noites na frente das delegacias ou fóruns, somos invadidos com excessos de notícias midiáticas sobre o mesmo caso a todo instante, as pessoas manifestam sua inquietação com palavrões ofensivos, jogam pedras, ovos, etc. Tudo pela tragédia que se torna espetáculo e, às vezes, as coisas se apresentam como se a prática da justiça fosse uma raridade. E, nossa indignação não deveria ser também pelos casos absurdos que são “engavetados” e os criminosos vivem soltos?
Contudo, o mandamento do amor ao próximo, pregado por Jesus, está distante de nossa prática, consta apenas nos nossos discursos. Hipocritamente, somos capazes apenas de amar quem nos ama (cf. Mt 5,43-48). Precisaríamos de uma conversão de lógica para entender os ensinamentos do Mestre Jesus. Então, ficamos inertes diante de uma cultura que quer se instalar e destruir os valores cristãos da sociedade. Só somos juízes, não somos nunca réus? Não falhamos? Não somos passíveis de deslizes? Crimes? É coerente pensar que, aqui não se trata de fazer defesa de marginais ou delinquentes, mas de ser justo, tanto para a vítima, como para o réu. E ser justo não tem equivalência com atos desumanos e que fere o direito de defesa que todos têm, mas ser justo no sentido virtuoso de Aristóteles: “obedecer às leis da pólis e o bom relacionamento com os cidadãos; buscar a equidade nas relações e compreender que o outro também tem seus direitos, e estes devem ser preservados, ou seja, justa medida, nem falta, nem excesso” (Ética a Nicômaco, livro V).
Portanto, quem são os culpados? Os que cometem seus crimes e têm suas vidas expostas na imprensa, com toda sua família (independente de serem todos criminosos ou não) ou os que retribuem a maldade com mais maldade? Não seríamos nós, seguidores da lei de talião? Longe de querer responder a todas estas questões e muito menos solucionar crimes, o importante é saber que nem um, nem outro têm razão, pois tirar a vida do outro, além de ser um crime (Código Penal Brasileiro, art. 121), é um pecado mortal, uma falta contra o quinto mandamento judaico-cristão (Ex 20,13). Paulo, o apóstolo das nações, nos diz que: “Quem está de pé, cuidado para não cair” (1Cor 10,12). Podemos até julgar os acontecimentos à luz dos critérios da Palavra de Deus, mas não podemos condená-los sob o critério da nossa moral subjetiva. Entretanto, podemos analisar possíveis causas, deste comportamento da sociedade: descrédito na segurança pública; busca imediata por soluções, estresse coletivo de uma modernidade ansiosa e assustada e que vê a justiça, lenta, cara e submissa; falta de razão e reflexão sobre os seus atos. Nós sempre nos julgamos melhores que os outros, porém, em última instância nos nivelamos ou fazemos pior, quando aderimos a este tipo de comportamento vingativo.
As consequências que encontramos são os muitos anarquismos e autarquismos. Cada um quer fazer a sua lei e aplicá-la como deseja. Às vezes ouvimos certos comentários, como: “Ocorreu ainda agora um assalto a banco e atingiram um rapaz de 18 anos. Morreu? Sim, morreu, mas já tinha roubado três bancos!” Percebemos que estas premissas soam verdadeiras, mas a inconsciente conclusão revela um sentimento de desprezo pela vida do outro. Como se pelo fato de ser bandido devesse morrer. Isso é pena de morte, vingança, falta de humanidade e sensibilidade ao Evangelho que nos ensina: “perdoar setenta vezes sete” (Mt 18,21-22). Com isso, não quer dizer que o perdão retira a culpa, mas não temos o direito de privar o outro de viver e recomeçar a sua vida. O perdão cessa o nosso sentimento de raiva e o ressentimento, que nos cegam e nos fazem agir pelo impulso, pelo sentimento. Para a lei civil, toda pessoa acusada tem o direito de se defender e, para nós, cristãos, é imprescindível a escuta, o discernimento e a verdade dos fatos. O nosso descrédito com a segurança pública não pode fazer de nós criminosos também. Contudo, se a lei de talião significava um espelho para o criminoso enxergar as suas faltas e ser punido, que a Palavra de Deus seja a nossa luz, a medida de nossos julgamentos, a prevalência da caridade e o ensinamento do amor e da justiça. Que isto seja garantido: pela lei civil ou pela autoridade do amor crida e manifestada consciente ou inconscientemente pela nossa sociedade, declarada cristã.
Referências:
BÍBLIA DE JERUSALÉM: Nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2008.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Livro V. São Paulo, Ed. Martin Claret, 2002.
Código Penal Brasileiro. Consultado na página http://edutec.net/Leis/Gerais/cpb.htm, acessada em 29/07/2010.
Código Penal Brasileiro - Comentado. Consultado na página http://www.scribd.com/doc/7990300/Codigo-Penal-Comentado, acessado em 29/07/2010.
Obs.: Texto analisado do ponto de vista do Direito Penal pela estudante de Direito, Luciana Davanzo.
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